quinta-feira, 19 de junho de 2014

PÉS JUNTOS

tem sido um grande esforço
acompanhar esse ritmo
o pé esquerdo segue o direito
e o direito segue o esquerdo
a tentativa diária de não cair
ando para frente
porque na frente ficam os olhos
mesmo sem nada enxergar
o escuro da frente é o escolhido
em frente
enfrento o escuro que me é oferecido
as mãos adiante
tentando moldar o inesperado
um tatear de nuvens sem abismos
tento acompanhar esse ritmo
e na maioria das vezes não consigo
de vez em quando os pés juntos
dão um salto no escuro



PASSOS DE AREIA

faz tempo que não piso na areia
meus pés sujos de rotina
somente na cama os enxergo
ou durante o banho
quando enxergo
também pra que a areia vai querer meus pés
talvez num futuro bem próximo
irá cobri-los
ou descobri-los entre os seus grãos
meus pés
mesmo quando estão parados
movem meu corpo
para onde não sei


quarta-feira, 18 de junho de 2014

RADIOGRAFIA DAS FEZES

de vez em quando me pego
radiografando minhas fezes
vejo pouco proveito
em averiguar possíveis fraturas
em tudo que o meu corpo
despeja para fora
ou no que resguarda
para despejar depois
quando não há ossos
sou obrigado a procurar
alguma mancha
alguma artéria entupida
isso quando a radiografia é boa
coisa rara
radiografar as minhas fezes
não é uma boa política
melhor arquivá-las
em algum lugar entre as falas
talvez seja mais justo




quarta-feira, 11 de junho de 2014

O INFERNO SÃO OUTROS

para visitar o inferno
não preciso ir muito longe
basta fechar os olhos
por isso permaneço atento
e de olhos bem abertos no paraíso
flutuo entre a gota de ódio e a idade
entre a gota de sangue e a felicidade
flutuo entre a flor amassada
e o peito do defunto
flutuo entre o lábio e a risada
entre a dor e a madrugada
permaneço de olhos abertos
bem longe do meu inferno

DESNUDO

olho a planta
olho a água
não consigo entender
poesia sem palavras
quero ser profundo
arranco a minha pele
e cubro o mundo
meus ossos tremulam
igual a uma bandeira
empalada pelo mastro


quinta-feira, 5 de junho de 2014

CLARABÓIA

meu olho direito enxerga uma coisa
o esquerdo enxerga outra
e eu no meio
sou a mais bela paisagem
diante dos olhos de um cego


ADVERBO

apesar do modo e do tempo
o verbo que me move não me conjuga
presente perfeito
que não cabe em nenhum embrulho


quarta-feira, 4 de junho de 2014

ESQUECÊNCIAS

as lembranças
assim como as cartas
amarelam com o tempo
palavras antigas usadas
precisam ser traduzidas
eu lembro de tudo que esqueci
com outras palavras
de um idioma desconhecido

terça-feira, 3 de junho de 2014

ENXUGANDO O CÉU

puxei a toalha
o suficiente para enxugar o rosto
não percebi que a ponta da toalha
estava presa ao céu
estava azul naquele dia
e enxuguei meu rosto
e o meu rosto
enxugou o céu
ao mesmo tempo


segunda-feira, 2 de junho de 2014

PRENSA

carrego nos bolsos poemas
que jamais serão escritos
minhas pernas pesadas
o mundo se afundando
eu sob o mundo
sendo esmagado
vendo os poemas espremidos
fugindo pelos lados

MOVEDIÇO

cubro o deserto
sou a superfície
onde o mundo se afunda
engulo os primeiros passos
vomito água
não há o que digerir
nenhum momento é alimento
definho até formar os espaços
entre os grãos de areia

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...